Um jogo de estratégia em turnos baseado na clássica série de ficção científica. O mapa é dividido em vários setores, cada um contendo um determinado número de estrelas, bases estrelares e naves Klingon inimigas. Seu objetivo é vasculhar os setores à procura das naves Klingon e destruí-las antes do tempo limite, ao mesmo tempo que gerencia a energia, escudos e torpedos da Enterprise.

O jogo em si é bem legal, mas, assim como muitas dessas obras pioneiras, a História em volta dele e de sua distribuição é mais fascinante ainda, pelo menos para mim. Mike Mayfield, o designer original, criou o game na mainframe de sua escola, um SDS Sigma 7 (a qual obteve acesso sem autorização), enquanto concluía a high school. Sua intenção era fazer um game espacial como Spacewar!, mas que pudesse ser jogado através de um teleprinter - displays gráficos ainda eram proibitivamente caros e raros em 1971. Sua intenção era concluir o projeto antes de se graduar, mas como muitos projetos de computação ele não concluiu a deadline estipulada. No verão após a sua graduação ele enfim concluiria o jogo, em gloriosa fita perfurada.

Eventualmente Mayfield ganharia acesso a outro computador, um HP 2000c que os funcionários de um escritório de vendas da HP deixaram o jovem brincar sob a condição de que ele portasse seu game para a máquina. Como a versão de BASIC do HP 2000c era diferente da do SDS Sigma 7 em que ele originalmente criou o jogo, Mayfield decidiu reescrever o jogo do zero. Em 20 de Outubro de 1972 o jogo foi concluído e adicionado à biblioteca de Programas Contribuídos da HP em 1973, entrando assim no Domínio Público. Essa versão, conhecida como STTR1, é que foi amplamente difundida e distribuída publicamente, e não a originalmente criada em 1971. Se você procurar pelo código fonte de Star Trek na internet, é o STTR1 com que você irá se deparar. Se bobear, a versão "original", feita pra o Sigma 7 da high school de Mayfield, nunca saiu da fita perfurada.

A história, claro, se complica. Apesar de STTR1 ter sido bem difundido, ganhando espaço até em newsletters e zines populares da época como a DEC Edu e What to Do After You Hit Return or P.C.C's First Book of Computer Games, essa provavelmente não é a versão de Star Trek mais conhecida ou jogada. A já figurinha carimbada David H. Ahl portou o game para a linguagem BASIC-PLUS - sim, outra versão de BASIC; só quando a Microsoft entrasse em cena que a linguagem ganharia uma certa padronização - e o incluiu, junto de vários outros jogos, no clássico livro 101 BASIC Computer Games, originalmente publicado em 1973. Talvez devido a receios legais, ele mudou o nome do game para SPACWR, ou Space War... E não retirou nenhuma das menções a Star Trek.

Mas a coisa não termina por aí, oh não! Em 1974, um engenheiro da Westinghouse Electric Corporation chamado Bob Leedom viu SPACWR em 101 BASIC Computer Games e decidiu portar o game para sua estação de trabalho, um Data General Nova 800. No meio do processo, ele expandiu o jogo e mudou a interface. Concluída sua empreitada, ele mandou uma carta para a newsletter da People's Computer Company descrevendo seu feito, que foi publicada no Volume 3, nº 1 da popular e influente newsletter, em setembro de 1974. Nosso amigo David Ahl, ele de novo, assíduo leitor da newsletter da PCC como era, ficou interessado elas modificações feitas por Bob Leedom e entrou em contato com ele para publicar sua versão em sua revista, a também muito popular e influente Creative Computing. Essa versão, sob o nada modesto nome de Super Star Trek, agraciou o público pela primeira vez em 1976 na revista The Best of Creative Computing. Para vocês terem uma ideia de como o game era considerado um killer app, a capa da primeira edição da revista é nada menos do que o Spock.

Super Star Trek acabou virando a versão "canônica" de Star Trek. Quando 101 BASIC Computer Games foi reeditado em 1978, já não era mais SPACWR que ocupava o espaço no livro, e sim a versão ampliada de Bob Leedom.

Duas observações curiosas sobre Super Star Tek. Primeiro, aparentemente Leedom nunca viu Star Trek antes de se deparar com o game. E, segundo, ele pelo jeito conseguiu autorização dos criadores da série para utilizar o nome "Star Trek". Como uma pessoa com zero contato com uma obra conseguiu criar a versão "canônica" de um fangame com a autorização dos criadores é um dos grandes mistérios de nossa era.

Termino esse pequeno histórico do game com algumas divagações. Pra começar, a forma como muitos desses jogos primordiais foram desenvolvidos e difundidos me lembra muito a própria história da cultura impressa. Tendemos a ver textos como artefatos imateriais que emanam da mente de um autor singular ou um grupo de autores específicos. Mas o processo para a criação e difusão de um texto é muito mais complexo, um verdadeiro fenômeno contínuo em que estão envolvidos múltiplos fatores além da própria vontade do autor: a materialidade do livro, a influência de editores, as revisões textuais, etc, etc. O mesmo raciocínio se vale para games, pelo menos esses primeiros games: temos que considerar a plataforma em que foi lançado, a linguagem de programação, quem fez o port e em que linguagem/versão/plataforma, contribuições de autores posteriores, etc, etc. Tentar achar a versão "original" de um jogo é uma verdadeira arqueologia do saber, com várias camadas que desenterramos revelando novas descobertas e considerações e agentes múltiplos e diferentes circunstâncias moldando esses artefatos lúdicos com o tempo.

Em seguida, o meu dia hoje foi ocupado muito mais lendo materiais paralúdicos do que de fato jogando Star Trek. Gastei cerca de uma horinha com o game, contra mais de quatro só me debruçando por zines e newsletters de computação dos inícios dos anos 1970. Linkei aqui a People's Computer Company, Creative Computing e DEC Edu, mas isso é só a ponta do iceberg - tem também a Homebrew Computer Club Newsletter e a BYTE, só para citar algumas. Uma coisa bem interessante dessa cultura impressa computacional é que a abordagem e as aspirações da época em relação a computadores eram muito mais associadas com as "humanidades" do que com as "exatas", algo que hoje em dia pode parecer contra-intuitivo. Computadores eram vistos como ferramentas que iriam auxiliar avanços nas áreas do ensino, humanidades, artes liberais, etc. Games sempre parecem ter um papel central nesse discurso, especialmente em relação ao seu potencial como ferramentas pedagógicas.

Por fim, uma newsletter que vi sendo citada diversas vezes é uma tal de "Simulation/Gaming/News". Apesar de tanto a DEC Edu quanto a PCC atestarem para a sua existência e até mencionarem alguns jogos e programas que teriam sido publicados nela, não consegui encontrar a dita-cuja em lugar algum da internet. Se alguém achar uma versão digitalizada dela, me dá um toque, por favor.

Reviewed on Aug 17, 2022


1 Comment


1 year ago

Jogo velho: existe.

Lucas: