Nocturne é um jogo que eu acho que eu não consigo falar dele sem começar a ser muito abstrato ou colocar minhas experiências pessoais nele. Todos os Shin Megami Tensei posteriores a esse são jogos tão experimentais que eu não consigo pontuar algo bom sem me pegar numa encruzilhada de subjetividade. No primeiro SMT, apesar de eu gostar muito de toda a experiência que ele te entrega, não é um jogo sem problemas. A idade alcançou o progenitor de Nocturne mais do que eu queria, são ideias que apesar de eu respeitar muito, não funcionam tão bem quanto parece no papel. O segundo jogo é um passo muito grande pra frente, mas apesar disso, ele não tá isento dos problemas que o primeiro jogo tinha. Eu diria que em estrutura ele tem até mais problemas, só que o que ele alcança é tão... excêntrico? Charmoso? Não sei exatamente como explicar em curtas palavras a minha relação com um universo digital que brinca com os conceitos que não eram tão estabelecidos na série até então. Não é mais um "chaos é darwinismo e law é submissão aos deuses", todos os pontos de vista são válidos o suficiente se você se der o tempo necessário pra entender o mundo a tua volta. É uma história que brinca consigo a todo momento, e é muito fascinante perceber que esse é só o segundo jogo de uma franquia inteira, mas apesar disso ela já tem ciência de todas as coisas que fazem um jogo formulaico da série. Mesmo que eu possa passar o dia aqui falando do segundo jogo, eu provavelmente nunca iria citar a jogabilidade dele. Não é ruim, é só antiquada demais.

Pulando quase dez anos na cronologia do tempo e desconsiderando alguns jogos aqui e ali, a gente tem Nocturne. O que me fez interessar por Nocturne quando eu era bem novo foram todas as referências religiosas que a série carrega. Eu tava numa época que só de escutar uma guitarra com uma voz de porco gritando no fundo já era o suficiente pro meu martelo científico da opinião já classificar aquilo como bom. Black metal corria nas minhas veias, eu era a personificação da maldade. E então eu fui jogar Persona 3, porque naquela época eu não tinha acesso ao Nocturne de forma alguma. Mesmo que eu não me arrependa nem um pouco da minha escolha de jogar Persona 3 porque é um dos meus jogos favoritos e uma das coisas mais importantes na minha vida até hoje, eu sinto um pouco de remorso de não ter jogado Nocturne no momento que eu pude jogar ele alguns anos depois, porque só agora que eu realmente me debulhei nesse mundo.

Apesar de ser um JRPG, um gênero muito conhecido por suas histórias sobre salvar o mundo e sobre o poder da amizade, esse não é um jogo que tá preocupado em colocar em prática os clichês do gênero, ele é quase o total inverso do que você espera de um jogo desse gênero, pra ser sincero. Em basicamente dez minutos de jogo você chega de volta na cidade por um metrô, e nesse começo o jogo já deixa bem claro sobre não se importar com o jogador. Ao desembarcar, nunca é dada uma explicação sobre o que você tava fazendo e a relação que você tinha com basicamente esse mundo e os personagens ali. Todas as informações são muito superficiais, afinal, elas não importam. Quando você começa a explorar a cidade, as pessoas tão falando sobre um ataque terrorista que aconteceu no parque da cidade, e indo procurar sobre, você acaba encontrando um cara que te entrega uma revista onde ele mesmo escreveu um artigo, descrevendo um grupo de pessoas que acreditam em um evento chamado Conception. Após isso, você vai até um hospital pra encontrar seus amigos e a sua professora, e nesse bate perna tu acaba quase morrendo por um cara sentado em uma cadeira (que não é o Stephen Hawking). A sua professora intervém e te chama pro telhado. Ela começa a falar um monte de coisa que você ainda não entende, e então subitamente: o mundo acaba. Em dez minutos de jogo. Não é algo exatamente surpreendente, é tão abrupto quanto parece. Mas é um puta evento lindo, mesmo que isso pareça estranho. E então, quando você escapa do hospital depois de ser demonificado, você se encontra nesse mundo deserto, pós-apocalíptico, estranho e caótico habitado por demônios. Inicialmente, pelo que eu sei, a ideia desse mundo era pra ser algo que a série só foi conseguir fazer 18 anos depois no quinto jogo da franquia, eram pra ter vários demônios perambulando pelo mundo enquanto você explorava, a ideia era que você observasse os comportamentos deles e de como eles interagiam com o mundo. Por falta de poder de processamento do PS2, essa ideia infelizmente foi descartada. Apesar disso, não é muito difícil palpar esse ar de destruição ao decorrer do jogo, a ambientação de Nocturne chega até a ser um bagulho esotérico. Não é um jogo agressivo, e eu até diria que é um jogo que te quer ali dentro dele, quanto mais você joga, mais apegado você fica ao que Nocturne consegue construir. É quase que um sonho molhado pra quem curte a franquia, uma das coisas que me fizeram me apaixonar pelo primeiro e pelo segundo SMT foi a atmosfera, e quando eu entrei em Ginza e a música começou a tocar um sorriso muito genuíno cresceu no meu rosto. E mesmo assim, Nocturne não é um jogo que tenta te colocar no mundo dele pela ambientação. A atmosfera dele é única, estranha, é depressiva, é solitária, é deslocada. É estranho, porque igual eu disse antes, quanto mais eu jogo, mais Nocturne me prendia dentro do espaço lúdico dele, mesmo que a todo momento o jogo reforçava essa ideia de não se importar com o Demi-fiend e por tabela não se importar com você, tentando te isolar ao máximo. Uma coisa que eu basicamente percebi na metade do jogo pra frente é que em nenhum momento ele parece querer falar sobre como o mundo era antes do apocalipse começar. Pra mim, isso tem a ver com o tema principal que a história tá contando aqui. Tem um conceito que Nocturne estabelece bem cedo na história dele, e esse conceito é o conceito chamado de "Reason". Pra entender o que é uma Reason, primeiro precisa se entender porque o mundo se tornou do jeito que ele é agora. Acredito que não seja surpresa pra ninguém que Shin Megami Tensei é uma franquia com muitos spin offs, e muitos desses jogos sendo da mainline ou não tem como tema principal o apocalipse eminente ou o próprio apocalipse em si. Uma teoria que normalmente é levantada na comunidade é que todo mundo no universo compartilhado tem uma data de validade, e o mundo de Nocturne passou da data de validade. É um ciclo em que todos os mundos estão fadados a ter, afinal, o próprio nome da franquia já explica tudo isso. Shin (真, que em uma tradução literal significa algo como 'verdadeiro', ou 'genuíno', mas numa tradução mais interpretativa é mais algo como 'novo', porque se trata do reboot que a série teve na transição do Famicom pro Super Famicom, pra se libertar das suas descendências literárias e se tornar algo próprio), Me-gami (女神, significa 'deusa') e Ten-sei (転生, que significa 'reencarnação'), ou seja, 'A nova reencarnação da deusa'. Essa ideia de ciclo não é algo que surgiu na narrativa de Nocturne, porque a própria franquia até então já sofreu uma reencarnação na mudança de geração, outra na criação da série spin off chamada "Devil Summoner" e mais outra na criação de mais uma série, chamada de "Persona", e isso sem contar nos outros trocentos spin offs que a série já tinha que eu não consigo me lembrar no momento que eu me encontro escrevendo isso. Reencarnações mais literais também já aconteceram em outros jogos, não vou citar aqui porque são spoilers, mas tanto no primeiro jogo e no segundo jogo já haviam reencarnações. Nocturne trata a reencarnação agora no mundo, tem uma fonte de poder demoníaca chamada Magatsuhi, que é uma substância proveniente dos humanos quando eles são submetidos a emoções, sendo essas emoções principalmente o medo. Basicamente, é o adrenocromo. Então sim, Nocturne é aquela teoria da conspiração que eu não vou explicar aqui por ser estúpida, porque você encontra e interage com várias organizações que aprisionam humanos pra coletar o adrenocromo japonês. O que o Magatsuhi faz é que, em conjunto de uma quantidade exorbitante dessa substância e uma "ideia" amplamente difundida em uma legião de pessoas, é possível chamar um demônio patrocinador pra transformar o mundo da maneira que você deseja. A ideia principal de Nocturne é isso, é sobre lutar pra ver quem vai virar um Deus e refazer a porra da Terra. O negócio é que demônio nenhum pode ter uma Reason, apenas humanos, e como o Demi-fiend é um demônio, ele não pode ativamente lutar pelo que ele acredita, ou pelo menos não pelos meios convencionais. Tem vários personagens que você encontra ao decorrer do jogo, e cada um deles eventualmente vai representar uma Reason. Esse sistema foi feito pra substituir o sistema de alinhamento dos jogos mais antigos, e ele serve muito bem como uma ludonarrativa. Também tem outra forma de se aproximar com a história do jogo, que é só tacando o foda-se pra tudo e todos, matando tudo que você vê pela frente de bermuda e chinelo antes de chegar na dungeon final do jogo. Apesar de não se chamar assim, esse final é o que mais se aproxima de um "Neutral", mas com suas próprias peculiaridades.

Acabei de perceber que eu escrevi tudo isso e não citei nem o sistema de batalha que eu acho genial. Enfim. Até antes do lançamento de Nocturne, eu acho que Shin Megami Tensei não era uma franquia muito famosa por seu combate. Todos são muito experimentais, mas não algo como um Trails, que é experimental mas que funciona muito bem, mas um experimental que não funciona exatamente como deveria. A franquia sempre esteve em evolução, seu diferencial sempre foram as fusões, mas seu combate nunca foi exatamente o charme da série. Nocturne introduz um sistema novo chamado de "press turn", e nossa, esse sistema que tem apenas duas palavrinhas muda MUITO o flow do jogo. Qualquer reclamação que alguém possa ter com jogos que usam do combate em turno é totalmente esmagada pelo sistema de press turn. Nenhum combate é chato, todos eles são um teste de fé. Cada ataque seu é obrigatório, mas também cada ataque seu pode ser uma chance de você morrer. Quando você erra, você perde dois turnos, o que você errou e o próximo turno que você teria. Ou seja, às vezes errar um ataque vai te trazer a morte porque você perde o resto do seu turno inteiro e se torna suscetível aos ataques do inimigo. Quando você acerta um crítico ou explora a fraqueza do inimigo, você ganha um turno extra pra poder atacar de novo e dar mais dano. Cada ação ao desconhecido é basicamente uma aposta, entender o sistema de Nocturne é articular a sua fé e transformar ela numa navalha. No começo, batalhar em Nocturne parece ser algo muito agressivo, parece que o jogo ativamente quer te expulsar daquele mundo. Mas ao transformar ele no SEU jogo, tudo flui diferente. Batalhar não é mais apostar, é destruir seus inimigos o mais rápido possível enquanto você controla seus recursos. Sua fé não é mais instrumento apenas de incerteza, e sim de certeza. E mesmo assim, às vezes você pode só se deparar com um inimigo que te esmaga em um turno, e isso é mágico. Nocturne não é injusto, Nocturne é lindo. As dungeons de Nocturne na maioria das vezes sempre tem uma gimmick pra diferenciar elas umas das outras, e normalmente elas são enormes. Eu vejo muita gente às vezes reclamar do tamanho das dungeons desse jogo, mas sendo sincero? Eu queria que fossem maiores. Um problema que eu tenho com muito JRPG é que às vezes eu sinto que eles são rápidos demais...? Talvez por ter me acostumado com o ritmo deles através de jogos normalmente considerados lentos, hoje em dia eu me encontro num estado em que eu procuro o sofrimento. E normalmente esse sentimento deles serem rápidos vem principalmente do dungeon design, que sempre parece acabar antes do que deveria. A interpretação de Nocturne com o dungeon crawler é muito óbvia, é uma franquia que tem suas raízes no dungeon crawler, e nossa senhora, fazer as dungeons desse jogo é uma sensação TÃO gostosa que eu quase nunca sinto em outros JRPGs hoje em dia. O combate e o dungeon crawling são os alicerces pro que faz Nocturne ser tão divertido de se jogar, morrer é divertido, porque te dá mais tempo pra lutar. Fazer fusão é divertido, porque você precisa catar mais demônio e isso te dá mais tempo pra lutar. Tudo nesse jogo é divertido, e ele ser um pouquinho lento na travessia dele é o que faz ele ser divertido porque por consequência te dá mais tempo pra lutar e pra engajar naquele mundo. Nocturne não é um jogo que você tá pelo fim, e sim pelo meio.

Eu joguei esse daqui totalmente às cegas, e por esse motivo eu achava que existia um final realmente neutro, e apesar de eu citar um final neutro, eu acho que na verdade ele se aproxima muito mais de um bad ending. Uma coisa que eu percebi depois de matutar um pouco sobre esse jogo, é que Nocturne sempre reitera em sua história nem que seja sutilmente a dicotomia da criação e da destruição. As duas são muito mais parecidas do que nós imaginamos. No começo do jogo, com o evento da Conception que eu citei antes, a cutscene que toca é muito esotérica e mesmo de estar mostrando literalmente a destruição do mundo que a gente conhece, ela é muito linda. Todas as vezes que o jogo cita a destruição ou sentimentos parecidos com tal, ele utiliza esses elementos pra criar uma beleza subjetiva e sutil. A cutscene onde a Chiaki percebe a Reason dela é uma das cutscenes mais lindas que eu já vi em um videogame, você encontra ela pela primeira vez fragilizada, sem saber pra onde ir por perceber sua falta de poder. Nessa segunda vez onde você encontra ela, agora ela começou a decidir o que irá fazer: ela quer poder. Não importa como, mas ela quer poder. E com essa conclusão que ela chega, todo o cenário que ela montou enquanto falava com o Demi-fiend... quebra. Ela tá descartando tudo aquilo que ela considera inútil: é o poder do mais forte que irá prevalecer. E Nocturne sempre tem essa sutileza quando vai mostrar essas coisas desmoronarem, acontece algo parecido com a custcene da Reason do Isamu, porém com suas próprias peculiaridades, já que se trata de outra coisa ali. Em contraste, basicamente toda vez que o jogo vai falar sobre a criação ele acaba usando atalhos pra criar algo que normalmente a gente associa como grotesco. O melhor exemplo que eu consigo pensar ainda citando a Chiaki é quando ela recebe o poder do Gozu-Tennoh. Ela começa a se metamorfosear em algo vil, é perturbador. Apesar dela estar recebendo o poder pra poder forjar seu próprio caminho, a cinemática dela é feia. Eu acabei não me aliando a nenhuma Reason ao decorrer do jogo porque eu achava que eu tava fazendo um final neutro assim, mas na verdade eu acabei me deparando com um dos finais mais insatisfatórios que eu já tive com um videogame, o Demon Ending. Quando você finalmente chega no fim da última Dungeon pra poder estabelecer uma reason, Kagutsuchi, essa entidade que vai transformar o mundo através do Magatsuhi e da Reason, literalmente manda você ir se fuder por ter matado todos aqueles que iriam criar o novo mundo e te expulsar do domínio dele. Lucifer também manda você ir se fuder e te deixa jogado naquele mundo que você mesmo criou. E a tela final do jogo é apenas o Demi-fiend olhando pro horizonte, sem ninguém, sem nenhum demônio ao seu lado, apenas isolado. Apesar do jogo passar o tempo inteiro mandando eu tomar responsabilidade pelos meus atos e escolher meu caminho, eu decidi me abster e tomei o cálice do poder, me envenenando com essa força infinita. Eu apenas completei a destruição, e não a criação. Se há alguém mais decepcionado comigo do que eu mesmo, é o tio Ben, pois eu não entendi que com grandes poderes vem grandes responsabilidades. O mundo de Nocturne naquele meu save para sempre irá ser o mundo eterno dos demônios, nunca se destruindo e nunca se criando, seu ciclo foi interrompido para sempre.

Reviewed on Jan 13, 2024


4 Comments


4 months ago

Pq vc colocou o novo testamento no backloggd?

4 months ago

text wall jumpscare que porra é essa

4 months ago

Eu acho que essa foi uma bela review yuux e bem detalhada continue assim!

4 months ago

ONE MORE GOD REJECTED