A linguagem cinematográfica em suas múltiplas expressões é resultado de um processos históricos e criativos que durante as primeiras décadas do cinema apresentaram as possibilidades e consolidaram essa mídia como uma linguagem própria, tomando a distância necessária de formas de expressão das quais o próprio cinema emprestou elementos, como a música, o teatro e a literatura. Para que o cinema pudesse de fato nascer foi necessário que houvesse um esforço em descolar-se de suas influências e apegar-se a sua própria tradição, tornando-se, portanto, a mídia mais autorreferencial já vista até então. O bom cinema celebra a si mesmo.

Os videogames, por outro lado, em específico o senso comum em torno da mídia interativa, celebra empréstimos, ou mesmo assimilações de artes alheias à tradição dos games, em específico o cinema. Deve-se, antes de tudo, reconhecer a relação histórica e a importância da influência da linguagem cinematográfica sobre a construção da cultura dos videogames, dado pontos de intersecção técnicos compartilhados pelas duas mídias. No entanto, cabe estabelecer que uma arte só existe quando ela realiza-se em si mesma, sem depender de empréstimos, isto é, a evolução da linguagem dos videogames depende que os games sejam cada vez mais games e celebrem a sua condição como jogo, diferente da ideia atacanha de compreender a presença de elementos cinematográficos em um jogo como sinônimo de qualidade dentro do espectro. Pelo contrário, nesses casos o que prevalece é a covardia de admitir-se como jogo e seguir a fundo um projeto de criação dentro das infinitas possibilidades da linguagem.

Sob essa lógica, The Last of Us apresenta-se como um jogo essencialmente de enredo, focado nas relações entre os personagens, valendo-se principalmente de cutscenes que pontuam os principais momentos da trama e dão sentido ao jogo, entre uma cena e outra existem sequências de exploração que consistem em segurar o direcional para frente e arenas de combate que permitem o uso de um combate quebrado e disfuncional oferecido pelos desenvolvedores, ao passo que, em termos de narrativa, principalmente nos momentos de cutscenes, após a segunda metade o jogo opera com qualidade. Trata-se de uma boa história, de bons personagens, cenários interessantes de serem observados, que no entanto não compõem um bom jogo, o corpo narrativo não integra-se junto às mecânicas, a relação se dá em dissonância, percebe-se um jogo disjuntado, cujas partes não possuem coesão. A muleta oferecida pelas sequências cinematográficas não mais é capaz de dar conta da complexidade que os videogames da ultima década demandam.


Cabe ao vídeo game negar qualquer coisa que não seja a si próprio, pretensões que visam alternativas alheias às qualidades da mídia retardam sua evolução, leia-se, perceber empréstimos cinematográficos como benéficos ou mesmo pontos altos num produto da mídia, nada menos é que desprezar a própria mídia e impregnar uma visão míope sobre suas possibilidades. Deve-se libertar o videogame e amar o videogame, pois este ainda não foi inventado.

Reviewed on Aug 08, 2023


3 Comments


8 months ago

parabéns pelo interesse de escrever sobre videogames trazendo perspectivas livres, texto interessante de ler, mas tenho minhas discordâncias e quero pontuar.

em primeiro lugar, aqui não é justificado - e no geral não há uma justificativa objetiva - pra essa constatação de que uma arte precisa se "realizar em si mesma" (o que quer que isso signifique), nem o por que ela deveria fazer isso, e que o videogame precise se ancorar exclusivamente nas suas tradições de "jogo" pra se legitimar como uma forma de arte e ter um direcionamento claro e válido de ser concebido.

existe uma racha no meio acadêmico de videogame entre a escola da ludologia e a escola da narratologia. à um grossíssimo modo, é sobre uma escola que defende que o jogo tenha que ser estudado como jogo, e uma outra que defende que o jogo tenha que ser estudado como um meio narrativo, adotando heranças da literatura, do cinema, etc. existem variações entre os diversos estudiosos que representam cada uma das escolas em algum nível, mas no geral, existe algo extremamente problemático sobre a escola mais radical da "ludologia" quanto à essa redução do objeto videogame à uma única herança e essa ser a herança do jogo pré-digital. em algum momento, essa forma de se colocar as coisas foi extremamente importante pra criação de um campo de estudos autônomo pro videogame dentro de si. o problema é essa insegurança, esse conservadorismo até, de permitir que um objeto datado de imagens, sons, estrutura, organização ordenada, construção de imagens mentais através de diversos elementos e organização de elementos (o que caracteriza uma forma de narrativa), além da própria organização de um universo simulado como defendia a ludologia, não possa ser concebido também por suas próprias heranças narrativas, estéticas. o panorama é gigantesco: o que mais se esperaria de um meio que mal tem uns 50 anos desde que foi fundado? por que se apropriar de um terreno tão fértil e extenso quando a área de game studies e não permitir que outros olhares venham explorar suas outras heranças estilísticas?

eu entendo a crítica colocada aqui e, em algum nível eu consigo observar ela. mas honestamente, eu não acho justo à forma como ela é colocada: como aqui é criado um "ideal" de videogame legítimo, ao invés de ter usado esse repertório pra descrever o por que The Last of Us não "sustenta" o que propõe a partir das suas escolhas dentro de si mesmas. não me leve a mal por colocar dessa forma, mas acho que quem mutila aqui as possibilidades criativas e despreza a própria mídia aqui é o seu texto, que no lugar de observar por que as coisas operam com "qualidade" dentro de como a obra se constrói com seus recursos, prefere encontrar algo de inerentemente problemático na escolha desses recursos, uma problemática que não atinge a experiência final - que é o que o videogame é, no fim das contas.

o próprio resgate a essa discussão de "dissonância ludonarrativa", que pra mim é a morte do videogame por si só. é mutilar a possibilidade do meio de construir contradições e sentimentos ambíguos e conflitantes através do atrito entre seus elementos constitutivos (o tal canal de narrativa embutida e de narrativa emergente).

acho super problematizável sim o quanto The Last of Us é um jogo que compra essa narrativa de se "legitimar" como uma arte a ser prestigiada através da apropriação de elementos estéticos do cinema, usando o status de "forma de arte" do cinema como muleta pra que o videogame também seja reconhecido como tal. e acho válido discutir isso, mas muito mais como uma forma de resgatar o valor de jogos que são só jogos aos olhos da sociedade do que de denegrir The Last of Us por ser um reflexo desse zeitgeist. talvez você ache isso interessante, eu não acho. não gosto quando discussões sobre jogos morrem antes do ato de jogar, principalmente quando elas se propõem a dizer o que o videogame deve ou não ser.

enfim, esse é o meu ponto. se quiser continuar a discussão sem ser por aqui, meu discord é "twtolecc".

8 months ago

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8 months ago

uma errata que eu escrevi mal: eu entendo sim o que você quer dizer com o videogame precisar existir dentro de si mesmo, eu não concordo é como o que é descrito como videogame aqui, como é uma perspectiva limitada. é quase como dizer que um musical é apropriação da música e uma ofensa à celebração da "tradição do cinema" dentro de si. devemos sim pensar sobre o cerne dessas formas pra nos conectar com elas, mas precisamos entender que seus panoramas são infinitamente maiores do que o que a gente pensa. e que um cineasta não escolhe "ser cinema" ou "não ser cinema", ele só faz o filme. às vezes intencionalmente rasgando uma tradição no meio. uma tradição estilística, uma "regra" de bem-fazer, uma forma estabelecida de encenação. e de filmes em filmes esse panorama se estende. é uma arte, cara.

8 months ago

um filme musical* lol