This review contains spoilers

“Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais à corações de cera! São as afeições como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco, que terem durado muito.”

Se o tempo pode curar feridas, eu arriscaria dizer que dar tempo pode conseguir evitá-las.

Dragon Age 2 é um excelente jogo, o qual eu adoraria dissertar sobre com a consciência de que este jogo pôde alcançar a grandeza do seu sucessor, tendo tido muito tempo pra expandir o que Origins deixou de herança. Infelizmente, essa não é a realidade, mas a realidade também é digníssima de discussão e aqui eu trago minhas elaboradas divagações sobre esse grande game.

A gameplay de DA2 permanece similar ao seu antecessor, salvo pelo significativo aumento na velocidade de tudo que é feito, particularmente seu combate, que mais do que nunca se assemelha a um hack and slash, onde golpes e itens são lançados a todo momento e piscar pode te fazer perder alguma informação.
Caso eu não tivesse jogado este jogo na dificuldade mais alta consciente do que ela resguardava, pouco mais poderia ser dito sobre o combate, além de que ele se trata de uma grande operação matemática glorificada, onde golpes, feitiços e habilidades são apenas os operandos.
É na dificuldade "Nightmare" que vemos que lançar bolas de fogo e causar tremores na direção de nossos aliados faz mais do que só causar-lhes um leve desconforto e, sendo assim, é necessário parar pra escolher bem as táticas da equipe. Dessa vez as táticas e a IA funcionam muito melhor que no jogo anterior, embora os bugs ainda persistam e na ausência de ferramentas e pessoas capazes, pouco ou nada foi feito pra remediar os problemas inerentes ao sistema.

Todavia, para que as melhorias em gameplay pudessem ocorrer, o jogo passou por uma reformulação de muitas mecânicas e recursos presentes em Origins, muitas delas às custas de muitas simplificações — em partes positivas, em partes negativas —.
De exemplo positivo, penso que a simplificação do sistema de crafting permite ao jogador focar mais em cumprir seus objetivos e dar atenção à narrativa, sem a insípida busca por colecionáveis limitados por toda parte a fim de construir itens, especialmente os de cura. Mesmo que isso também tenha significado ter pouco menos de 10 poções e venenos no total.
De negativo, entretanto, penso que a simplificação na maneira como equipamentos são apresentados condena o jogador a não ter uma boa ideia de qual é a classe de equipamento que seu protagonista (e unicamente o protagonista) passará a usar, menos ainda sua aparência, destacando ainda mais a redução do sistema criado em Origins a meros cálculos. Isso passa a ser particularmente irritante quando precisamos escolher entre comprar itens a preços exorbitantes por seus atributos ou pela sua aparência.

E em questão de aparência, Dragon Age 2 me deixa estranhamente reticente quanto às escolhas na direção artística.
Por um lado, DA2 possui diversos personagens com aparências únicas e memoráveis, sendo raro que alguém que tenha descoberto Dragon Age sem imediatamente ver Garrett Hawke estampar alguma arte com sua armadura de mago imponente e icônica tinta de guerra vermelha em seu rosto.
Por outro lado, não posso evitar citar o elefante em baixa resolução na sala:
DA2 tem um bizarro contraste entre modelos e texturas em alta resolução e NPCs grosseiramente poligonais e mal texturizados, fazendo parecer que parte da população de Kirkwall se resume a carecas e calvos com um gosto por esconder o rosto e mostrar pouco mais que seu nariz e boca.
Certamente, um argumento que pode justificar esse contraste (além da berrante falta de polimento) é que a história está sendo contada por um narrador parcial, que era indiferente às pessoas sem nome e importância em seu caminho, portanto, não relembrando seus rostos (o que justificaria muitos deles estarem ocultados) nem detalhes.
Semelhantemente, a variedade de inimigos foi muito reduzida, com praticamente todos os NPCs hostis (e não únicos) escondendo seus rostos atrás de máscaras e capacetes.

Antes de falar sobre a escrita desse jogo, inegavelmente seu ponto mais forte, eu gostaria de comentar sobre alguns pontos negativos a respeito dela que mancharam parte da minha experiência de ponta a ponta:

A adição de um sistema de personalidade ao protagonista atrelada à algumas opções de diálogo durante a história forçam, na minha opinião, o protagonista a ter uma personalidade um tanto caricata, mesmo que em momentos chave isso garanta a consistência e realismo, torna-se um tanto cansativo ter de escolher entre ser Diplomático, Humorado ou Agressivo em todo tempo.
Por exemplo, a personalidade agressiva frequentemente faz com que o protagonista seja babaca e até mesmo preconceituoso, mesmo que ela seja importante para momentos em que o jogador queira ser mais assertivo.
Um dos momentos que mais me desagradou quanto à personalidade foi durante uma sidequest (fetch quest, particularmente), em que o protagonista chama os restos mortais de alguém de lixo, sendo ainda mais bizarro quando o NPC que recebe o "item" reage como se estivéssemos lhe devolvendo uma chave ou carteira sem muita importância.

Outro problema, ainda mais profundo e que até hoje divide opiniões, está na redundância de muitas escolhas dadas ao jogador, que muitas vezes se resumem a dizer sim ou não com algum floreio especial.
Em casos mais complexos, o caminho necessário para avançar a narrativa nos leva a "tomar decisões" em que nossa agência parece ser irrelevante, especialmente durante o clímax.

E por fim, quanto à narrativa, posso dizer que Dragon Age 2 é beneficiado pela equipe de roteiristas que, agora com o mundo de Thedas estabelecido, pode expandir a história, cultura e seus temas. Um breve resumo dos acontecimentos mais importantes:

Enquanto no jogo anterior temos uma jornada "heróica" em um mundo cinzento cujos problemas são apresentados habilmente na busca pelos principais grupos que auxiliaram os Grey Wardens na luta contra a escuridão, aqui podemos ver os problemas internos da região de Free Marches, particularmente na cidade de Kirkwall.
DA2 nos põe na pele de um(a) emigrante de Ferelden, conhecido pelo seu sobrenome — Hawke —, que foge com sua família de seu lar para evitar os horrores da quinta escuridão.
Eventualmente, Hawke e família chegam em Kirkwall, apenas para descobrirem que a cidade também estava lotada outros imigrantes de Ferelden, descriminados pelos locais e postos em condições de vida sub-humanas.
Política, religião e identidade se tornam os temas centrais da história e a tragédia parece perseguir o protagonista como um Mabari faminto.
Enquanto no jogo anterior precisávamos decidir as disputas por dois tronos, aqui temos um governante que se encontra encurralado por duas forças antagônicas com suas tensões aumentando cada vez mais: magos e templários.
Se por um lado os magos querem se ver livres do punho de ferro dos templários regulando todos os momentos da sua vida, os templários de Kirkwall querem proteger a cidade dos riscos que eles podem apresentar e aqui, qualquer deslize pode e vai ser explorado contra eles.
Paralelamente, os Qunari, liderado pelo Arishok, se encontram incapazes de cumprir seu 'dever' e se tornam uma ameaça religiosa e política à já fragilizada Kirkwall.
Se escolhemos guiar nosso protagonista a um caminho de diplomacia com os gigantes cinzentos e seu líder, veremos que o Arishok não se furta de expor as hipocrisias e fragilidades do equilíbrio que o Visconde de Kirkwall tenta manter.
Eventualmente e com uma provocação grave, a "paciência" do Arishok se esvai e ele decide que vai "consertar" a cidade, dando um golpe militar rápido e eficiente, assassinando seu líder e tomando seus nobres por reféns, eliminando qualquer um que não aceitasse a educação de seus novos soberanos.
Hawke, recém-enlutado pela perda tenebrosa e cruel de sua mãe em uma das missões mais (positivamente) destruidoras de todo o jogo, encontra-se na posição de resolver o conflito e trazer de volta à ordem instável da cidade, sendo eventualmente declarado campeão de Kirkwall por sua defesa firme e resoluta.
Agora, com muito poder e influência, o antes indesejado imigrante é empurrado cada vez mais a ver o que os templários e magos têm de pior e o que fazem em seu desespero.
Meredith, cavaleiro-comandante dos templários, torna-se cada vez menos paciente e paranoica com a convivência com os magos de Kirkwall, eventualmente se fartando de observar sua cidade sendo destruída por aqueles que foram "amaldiçoados com a aptidão para magia" se vira contra eles, não vendo outra solução senão sua exterminação completa da cidade, que, naquele momento, era o palco onde todas as atenções de Thedas estavam viradas.
Orsino, líder dos magos de Kirkwall, se encontrava cada vez mais insatisfeito com o domínio agressivo dos templários e sua comandante, bem com da incômoda neutralidade da grande-clériga, que buscava a paz entre eles, determinada em não tomar um lado.
Em um clímax controverso e difícil, não resta nenhuma opção a Hawke, senão dar à Kirkwall e a toda Thedas a respota que eles desejam, quer isso signifique a liberdade e reconhecimento social dos magos ou a consolidação do poder quase absoluto dos templários sobre eles.

Uma das coisas que mais me atrai na narrativa desse jogo é o quão despretensioso e, por vezes, tedioso ele começa, com muitas missões que parecem não ter grande importância para a história, até que elas de fato tenham.
Um dos meus exemplos favoritos de como o jogo trata despretensiosamente a história até precisar dela está na resolução dos assassinatos de mulheres na cidade, que no primeiro ato se encerra com Hawke obtendo uma recompensa por ajudar um péssimo marido a convencer a família de sua esposa que ele não teve influência em seu assassinato, apenas para que o segundo ato retome esse fio da narrativa, levando os jogadores atentos a um momento que eu só poderia descrever como:
— Ai, merda. NÃO!

Quando valorizamos os nossos companheiros de equipe e buscamos consolidadar nossa amizade e obtemos suas confissões de lealdade, descobrimos o quão perfeitamente imperfeitos cada um é e o que faz cada um ser brilhante em suas concepções.
Um dos exemplos mais interessantes para mim está no contraste entre duas personagens movidas por desejos extremamente egoístas e que são apresentadas com personalidades diametralmente distintas. Neste caso, a obstinação das duas pôs em risco mortal a vida de muitas pessoas, porém, apenas uma delas estava determinada a acreditar que suas ações eram por um bem maior.
Toda a discussão sobre liberdade em contraste silenciosamente existente entre Fenris e Anders também se desenvolve sem subestimar a inteligência do jogador. De um lado, temos um ex-escravo sendo perseguido e completamente avesso à magia (e ironicamente podendo ser salvo por ela), do outro, um jovem mago em forte conflito interno e sentindo na pele as dores de ser perseguido por seu dom em magia, anelando mais do que nunca à sua própria liberdade e de seus semelhantes.
No núcleo familiar, vemos Hawke carregar o fardo de ser o irmão (ou irmã) mais velho, invejado por sua irmã por não odiar a si mesmo (quando o protagonista é um mago) e invejado por seu irmão, forçado a sempre proteger os dois irmãos e sentindo-se ignorado pelos pais, que não parecem se importar com seu futuro.
Vemos o protagonista crescer em uma cidade preconceituosa, onde a riqueza dita sua importância e a complacência com a injustiça parece ser regra, no meio de uma raça que não parece nunca questionar seus métodos nem visão de mundo e que eventualmente tenta resolver a "indisciplina" e "cegueira" da cidade com um banho de sangue e terror, fomentado pelas conversões forçadas ao Qun como única alternativa de vida.
Também vemos o protagonista perder tudo que tem de mais único e precioso, possivelmente vendo a pessoa que ama o trair ou tomar uma decisão marcante que põe seus interesses acima do amor pelo protagonista.

Em suma, Dragon Age 2, com seus defeitos e acertos, serve de palco de modo que, quando todos os holofotes estiverem mirando no Inquisidor e na Inquisição, os jogadores saibam bem que o mundo se expandindo diante dos nossos olhos não é dicotômico, que as aparências enganam e que a paz não existe, nem existirá sem um longo rastro de sangue e destruição, para o qual este game é, além de tudo, um prelúdio.

Reviewed on Jan 01, 2023


3 Comments


1 year ago

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1 year ago

>> Texto grande que parece muito bacana sobre um jogo que eu quero jogar.
>> "Esta review contém spoilers."

🙁
Eu recomendo que jogue, @CDX, vale a pena, mesmo sem ler a review.

1 year ago

Pretendo jogar toda a trilogia Dragon Age. Acho que nunca joguei nada da Bioware, os RPGs dela parecem bem bacanas.