NORCO usa do surrealismo futurista e do expansionismo industrial para entregar uma história interativa que realça uma das mais importantes e básicas verdades da existência humana.

As coisas mais bonitas nesse mundo decaído ainda são as coisas efêmeras. E é através desse jogo de 6 horas de duração que estamos diante de uma das melhores metanarrativas já feitas.

NORCO é quase autobibliográfico ao ser baseado e se passar na própria cidade de NORCO, em Louisiana. Cidade dominada por uma companhias petrolíferas em que seu próprio nome é um acrônimo para New Orleands Refining COmpany. Da mesma forma da cidade do jogo, a agressiva expansão industrial respinga não só na vida dos moradores para como também diversas patologias à ambientação local, como inundações, poluição, erosão massiva etc. O fato da região do jogo ser, a um só tempo, real e ficcional, torna ainda mais tênue a linha entre o jogo e a realidade do jogador.

Nossa protagonista Kay foge dessa vida sufocante para adotar uma vida viajando nessa versão deteriorada e mega futurista distópica dos Estados Unidos. Eventualmente, Kay precisa voltar para casa ao descobrir que sua mãe que antes fora abandonada em casa agora está morta devido um câncer terminal. Kay se vê diante não apenas de uma bagunça familiar, mas laços foram cortados diante memórias confusas embaralhadas no tempo. Não demora muito para NORCO nos jogar em um mistério sobre as investigações clandestinas da sua mãe realizadas antes da sua morte na medida que lida da relação de Kay com as pessoas e com essa tóxica comunidade (nos mais diversos sentidos) que deixou para trás.

Norco combina vários gêneros para contar sua história, incluindo cyberpunk, mistério e Southern Gothic. Este último permeia todo o jogo, tanto no sentido visual quanto textual, com sua valorização da paisagem. A área está sendo invadida e envenenada por tecnologias: algumas do nosso mundo, como refinarias de petróleo e smartphones, e outras que não são exatamente do nosso mundo, como a nuvem corrompida e lucrativa na qual os personagens carregam suas memórias. O enquadramento de Norco como um mistério permite que você entenda como essas tecnologias destruíram sua cidade natal.

Uma das maiores forças de NORCO é que ele é totalmente destemido ao entregar o absurdo. Não um absurdo aleatório ou chocante, mas sim com total contexto dentro da narrativa que ele propõe em elaborar. É um jogo que sabe instigar o jogador para o emaranhado, dando as ferramentas não só em termos de mecânica mas como artisticamente para ele desenrolar o que acabou de presenciar. É uma verdadeira incursão para o mais profundo detalhismo que a escrita de um videogame possa ter em nível poético. O jogo fala de estrelas, céus e muitos olhos, desenterrando aquela ansiedade de observação e vigilância. Ele transforma pântanos em cérebros. Mistura redes neurais, religiões, corporações e cultos com impulsos humanos básicos de se correlacionarem. Pode começar com os problemas locais de uma crise ambiental global, mas logo se expande muito além disso, para inteligência artificial e dados, para privacidade, pobreza, desilusão, a maneira como a internet moderna pode pegar qualquer pessoa separada de uma comunidade em sua rede e radicalizá-los em uma nova rede. E o desespero e a futilidade das pessoas que veem as falhas da sociedade e querem fugir dela e escapar para sempre.

É um título que de cara é modesto mas demonstra que uma experiência rica em narrativa, feita por um desenvolvedor indie de primeira viagem, nem sempre precisa ser ofuscada por exibições ostensivas de lançamentos maiores. Norco pode se referir a si mesmo como uma espécie de pixel efêmero, uma aventura que é um vasto conto cósmico que será lembrado com carinho com certeza, pelo menos por mim, décadas depois.

Reviewed on Feb 18, 2024


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