Por meados da década de 60, um rapaz alemão chamado Ralph Bear teve uma ideia brilhante: "e se pudéssemos interagir com a televisão?" Poucos anos depois ele já estava desenvolvendo um projeto chamado de Brown Box, que mais tarde seria publicado com o nome de Magnavox Odyssey, sendo o primeiro console da história. Exatamente na mesma época nascia Goichi Suda, o homem que 30 anos depois veio com o mesmo questionamento, mas com outra pretensão: "e se pudéssemos elevar ao máximo a ideia de interagir com a TV? De criar uma história através de um videogame?". Tudo isso é um evento canônico, porque videogames foram inventados para que Killer7 pudesse existir.

O jogo começa muito direto ao ponto. Uma cutscene, o nome de certos personagens e um alvo: vá e faça. E pode parecer algo simples, mas eu considero isso aula de game design, imagina o tanto de tempo que seria perdido com mais textos e tutoriais, em vez disso, o jogo apenas pergunta se você quer aprender os controles básicos; o resto da gameplay e mecânicas estão com você para se familiarizar, entretanto, várias explicações ainda estão disponíveis para quando ficar com dúvida em algo, basta conversar com um certo NPC. O primeiro level é um tutorial perfeito, seta perfeitamente a atmosfera desconfortável e assustadora, a bizarrice e o sentimento místico em relação a história, ao mesmo tempo que faz um ótimo trabalho em te apresentar o flow da gameplay pelo resto do jogo: andar pelos lugares, lidar com os inimigos e se adaptar às situações da melhor forma, resolver puzzles simples baseados em observação, utilização de personagens e itens. Essa é somente a estrutura, entretanto, porque cada capítulo vai ser algo muito diferente.

Em gameplay, Killer7 demorou um pouco pra clicar em mim, como é um jogo até que bem aclamado esperava algo mais complexo, até que chegou um momento em que comecei a apreciar de verdade, a partir do primeiro boss. Primeiro dando uma base: é um on-rail shooter, ficar parado e atirar enquanto o inimigo vai se aproximando de você, mas não exatamente igual aos outros do gênero, porque você pode se mover para frente e para trás (e outras direções, sendo a rota sempre definida pelo jogo). Além disso, são 7 personagens (mais para "personas") jogáveis, cada um com sua particularidade enquanto mantém a base da gameplay. Assim que você pega o jeito, fica extremamente satisfatório alternar entre elas para se adaptar ao cenário, seja porque vai ser a melhor forma de eliminar o inimigo ou para resolver algum puzzle. Então, por que amo essa gameplay mesmo sendo tão simples mecanicamente? Porque eu percebi que o Suda se aproveita muito de um aspecto que passa desapercebido por muita gente: o espaço. No caso, o espaço no qual as mecânicas do jogo conversam entre elas, o que é tão importante quanto, se não mais que as próprias. Não adianta nada ter ótimas idéias de gameplay se você não sabe construir bem onde e como elas vão interagir, um bom exemplo disso seria um jogo como Nioh, que você tem uma certa variedade de armas, skills, um sistema de postura que muda o jeito com que você maneja o que estiver segurando, mas na prática o combate é horrível porque nada em volta dele funciona. Por outro lado, Killer7 usa as limitações dele a seu favor, você não controla o personagem livremente, apenas aperta o botão de correr e escolhe a direção para se mover da maneira que o jogo permite, porém é um linear de uma forma que você não se sente limitado, é de um jeito que contribui na atmosfera encapsuladora dele, atiça sua curiosidade em saber para onde será levado, os ângulos enquanto tu anda são feitos de forma muito inteligente, isso somado com a paranóia de andar em corredores esperando ouvir risadas de um inimigo invisível (sim, a risada é a indicação de que ele está próximo). E o melhor está nas bossfights, cada uma funciona de uma forma completamente diferente que chega a parecer outro jogo, e tudo o que diferencia elas é justamente a construção desse espaço em volta, é genial, não atoa eu tive esse insight no final do primeiro ato.

Mas de tudo o que pensei em escrever enquanto jogava, de longe o meu aspecto favorito e o que mais tenho vontade de falar sobre é o quão único o game é. Ser único, diferente, exótico, é fácil, difícil é ser assim ao mesmo tempo que se mantém orgânico, é estilo com substância. Tudo aqui tem muita personalidade, desde a arte do menu, uma simples animação de morte, um loading, cada uma dessas coisas é tão bem feita e dá pra notar tanto esforço depositado que dá gosto de ver. Pode não ter os melhores gráficos de sua época, mas o que conseguiram fazer com o orçamento é incrível, e não é nem um caso em que se pensa "nossa, imagina o que poderiam fazer com mais recurso", não, não precisa melhorar nada, está perfeito assim, os modelos de personagem são muito bem desenhados e icônicos, a DIREÇÃO DE ARTE É INACREDITÁVEL, o uso das cores é coisa de gênio, absolutamente tudo exala estilo. Não tem como descrever. A sensação de jogar Killer7 é muito difícil de colocar em palavras, parece que você entra ali e está em outro mundo, é isso o que mais gosto de sentir jogando um videogame, é um mundo onde tudo é estranho ao passo que é familiar, tu encontra NPCs, escuta eles e não faz ideia de quem sejam, mas ainda assim vai se criando uma relação. Os próprios inimigos passam essa sensação de familiaridade, em maioria eles não são exatamente criaturas super bizarras, são uma linha tênue entre o assustador e o familiar, são mais próximos de um ser humano do que um zumbi por exemplo. Em resumo, é como navegar por um sonho, aquele sonho pesado que temos num final de uma tarde, os diálogos vagos e que ainda assim carregam algum sentido contribuem para essa ideia, assim como todo o surrealismo das fases, o sound design que mereceria um parágrafo inteiro dedicado a ele, a trilha sonora muito atmosférica, as escolhas de design que te fazem questionar "por quê?", por que toca uma das melhores OSTs numa sala em que leva 10 segundos pra atravessar e tu só passa por ela 4 vezes ao total? É o tipo de pergunta que não precisa de uma resposta, só está lá e você aceita, acredite nesse universo, é disso que falo quando citei que o Suda leva a ideia do que é jogar um jogo a outro nível.

Fazia tempo que não me sentia assim. Enquanto jogava Killer7, me sentia grato por ter essa oportunidade. Quando estava ocupado ou não podia jogar, só conseguia pensar nele. É uma combinação de tudo o que valorizo em jogos e na arte em geral, a criatividade, a personalidade, a capacidade de expressar ideias e sentimentos de uma maneira tão profunda, de trazer discussões e momentos que você vai levar pra vida. Apesar de toda a loucura da história, acredito que a ideia geral do que aconteceu fique bem clara, não é um confuso que é confuso porque sim à lá Christopher Nolan (brincadeira, só em alguns filmes), geralmente tem um diálogo que já explica o tema que tá sendo debatido a cada fase, o jogo te entrega vários elementos e a intenção é brincar com o que você acredita, para assim terminar de uma forma que muda toda sua perspectiva do que aconteceu antes, dá vontade de ficar jogando e rejogando só para compreender mais a cada vez. Quando chega naquela linda cena final, toca a música e os créditos rolam, eu só consegui pensar "masterpiece", tanto que prestei atenção em todos os nomes que aparecem só para sentir que tô valorizando eles. Definitivamente não é algo que eu recomendaria para todas as pessoas do mundo, mas dê uma chance algum dia, quem sabe você tenha uma experiência parecida com a minha :)

"That wonderful smile is gone for eternity"
"Don't cry, Garcian, that's not like you"
https://youtu.be/M8JzA2B5Z7I?si=hMcIPy38kH6Bp23v

Reviewed on Feb 09, 2024


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