Night City é embriagante: a cidade é enorme, opressora, avassaladora. É o caso em que as maravilhas tecnológicas realmente funcionam: a cidade não é viva de verdade, mas engana - vislumbro verdade em cada raio de luz cortando a fumaça da barraquinha de espetinho, sendo raytraceado gloriosamente para refletir num morador de rua tendo um espasmo num beco. Um padrão que eu não havia encontrado antes para esse nível de apresentação em um RPG de mundo aberto AAAAAA, verdadeiro banho de atmosfera, o FPS variável que se dane.

Uma surpresa. O elenco é um de seus maiores fortes: personagens carismáticos, expressivos, todos em sua forma vivendo como podem em um triturador de cidade, intersecionando o moribundo V em suas crises e sonhos, e dessa relação sempre saindo algo muito maior do que um item especial ou um punhado de experiência. Posso não estar aqui logo cedo: ainda assim, busco crescer com aqueles que cruzaram seu caminho, e, como herança, deixá-los uma cidade um pouco mais digna.

Mergulhado no miasma, Phantom Liberty me tirou da ilusão um pouco: essa não é uma história para presidentes maneironas e agentes secretos atuados por galãs. Me fez lembrar que por mais punk que Cyberpunk se porte, nunca deixará de ser uma produção zilionária com alguns muitos acionistas pra agradar e OKRs a bater - Idris Elba e Keanu estão aí pra ajudar nisso - o que deixa tudo com um gosto meio amargo na boca. E muito deste corpospeak seguro transborda no jogo principal também: ainda que não tenha medo de mostrar o lado sujo de seu futuro horripilante, sempre apolitiza a luta de V e até a de Johnny, procurando cooptar estéticas revolucionárias, balançando-as como uma cenourinha anti-establishment que nunca é alcançada. Não cobro deles que possamos derrubar Arasaka e estabelecer uma comuna ecofriendly, e sim lamento que não nos permitem nem um grito surdo diante de um sistema implacável: a revolta e o horror distópico são apenas uma vibe, matéria secundária que não é cerne para um mundo de robôs maneiros que dão double-jump, conseguem ativar bullet time e refletir balas com uma katana (isso é foda mesmo). Precisamente, em outra distopia, Joyce Messier já nos havia dado a palavra: o capital assimila todas suas críticas em si mesmo, e se fortalece através da produtização das mesmas.

Cyberpunk caminha, entremeando entre sua genuína voz e sua realidade material como obra que não existiria sem o prospecto de gerar montanhas de dinheiro pra muita gente, e todo o peso que vem com isso. Assim como Night City, sua efígie: um emaranhado de zigurates construídas para deuses falsos, monumentos à soberba do capital; entre suas ranhuras, nos becos sujos e indesejados de sua arquitetura, prospera maravilha, desespero, esplendor, e todo tipo de meleca que nos torna humanos.

Reviewed on Nov 12, 2023


6 Comments


5 months ago

acho incrível ver cyberpunk se desvinculando do seu lançamento conturbado, de fato é um jogo que apesar dos seus problemas, consegue refletir muito bem o real significado de cyberpunk e tudo que esse gênero tem a oferecer de melhor!!

5 months ago

Por FAVOR não se esqueça de como o jogo realmente era no lançamento...
https://youtu.be/omyoJ7onNrg?si=a6-GmrAgUfaVweRZ
Opiniões? Achas perdoável? Isso afetaria a sua nota?
Att.

5 months ago

@alvarotolledo

Acho perdoável! Não afetou em nada minha opinião atual dele.

5 months ago

@saintfrog 🔁 crazyfrog

5 months ago

já acharão a cura da calvicie em 2077?