Hamurabi como conhecemos é o port caseiro e comercial de um jogo de mainframe criado por um hacker-acadêmico para demonstrar as capacidades do PDP8, que, por sua vez, é a versão simplificada de um jogo ainda mais antigo conhecido como The Sumerian Game, financiado por um projeto governamental e criado para ser usado como ferramenta didática em sala de aula. Em cada passo dessa transição, de um ambiente escolar para acadêmico para comercial, o jogo foi tendo não apenas parte de seu design original subtraída como também sua filosofia completamente modificada. Acho que vale a pena fazer uma pequena retrospectiva sobre esse processo.

O Sumerian Game é considerado um jogo perdido. Seu código não foi preservado de forma alguma, o projeto que o financiou se extinguiu em 1967 e as pessoas chave no desenvolvimento do game (a professora e game designer Mabel Addis e o programador William McKay) faleceram anos atrás. As únicas fontes de informação que temos sobre o game vêm de alguns escaneamentos digitais preservados pelo Strong Museum of Play e o relatório final do projeto que financiou o game, detalhando sua produção, uso e resultados. O relatório é uma fonte especialmente valiosa devido a quantidade de detalhes que tem sobre o funcionamento do game, servindo não-intencionalmente como uma mistura de Game Design Document e Post-Mortem.

Com a documentação que nos resta, é possível tirar algumas conclusões importantes sobre o caráter do Sumerian Game. Primeiro, antes de ser um game, ele era uma ferramenta pedagógica. Seu fator lúdico era um meio para um fim - neste caso, ensinar crianças do fundamental alguns princípios básicos de economia. Mas diferente de peças de edutainment de hoje em dia, o Sumerian Game não foi pensado como algo a ser usado fora da escola, para que crianças aprendessem enquanto brincavam sozinhas. O jogo foi feito para ser usado dentro de sala de aula, com o papel ativo dos professores no processo da educação não sendo deixado de lado, e sendo integrado com outras ferramentas de educação como slides e aulas gravadas. O fato da game designer ser uma professora experiente fica bem claro nisso.

Um segundo ponto a se tocar é que o Sumerian Game não carecia de recursos. Ele tinha acesso irrestrito a um dos hardwares mais poderosos de sua época, o IBM 1401, e o projeto foi financiado pelo próprio Department of Education dos EUA, angariando o equivalente a quase 1 milhão de dólares em dinheiros atuais segundo a Wikipédia.

Uma conclusão que se tem ao juntarmos esses dois pontos é que preocupações econômicas eram praticamente inexistentes a criação e desenvolvimento desse game, algo um tanto que peculiar na mídia ludoeletrônica. Apesar de eu não compartilhar da visão (um tanto cínica, imo) que o caráter comercial de 99% dos games os impede de atingir o estatuto de "arte de verdade", é inegável que as preocupações comerciais afetam sim a forma e conteúdo das obras de uma maneira ou outra - às vezes de forma catastrófica, vide microtransações e a Web 3.0. Não aqui: The Sumerian Game estava numa posição privilegiada que parece só ter existido nesse breve momento da pré-história gamer em que os jogos eram quase exclusivamente projetos governamentais ou acadêmicos.

Que fique claro, só porque o Sumerian Game não tinha a intenção (ou sequer a condição) de eventualmente se tornar um produto comercial não quer dizer que estava imune à estrutura capitalista subjacente da sociedade que o criou. Mas aqui essa superestrutura não se manifesta como um elemento da commoditização da arte, e sim de formas ao mesmo tempo mais sutis e mais profundas, ouso dizer que até mesmo filosóficas. Essas manifestações ficam dolorosamente explícitas se lermos o relatório final que linkei mais cedo. Apesar do jogo ser ambientado na antiga suméria e de um de seus objetivos declarados ser ensinar aos alunos o funcionamento daquela sociedade, todas as representações da economia antiga são reflexos de conceitos contemporâneos, especificamente liberais, da economia. Toda a dinâmica social é explicada em termos de Labor e Capital, dois conceitos completamente alheios às mentalidades das sociedades daquela época e lugar e completamente anacrônicos dentro desse contexto. De fato o Sumerian Game foi criado para ensinar princípios econômicos modernos, não história antiga, mas isso não dá ao game um passe livre para massacra a História: o relatório final deixa bem claro que a escolha dos sumérios foi para "protestar contra a crescente tendência em currículos escolares de ignorar civilizações pré-Gregas". Um sentimento do qual eu compartilho totalmente, mas que o jogo falhou em aproveitar em sua execução.

Dito isto, as realidades da "estrutura capitalista subjacente" deixariam de ter efeitos limitados à conceitualizações equivocadas e anacronismos acidentais quando a transição do Sumerian Game para Hamurabi terminasse. O primeiro passo desse processo foi a recriação do jogo original agora num ambiente empresarial-acadêmico, não mais escolar, inicialmente sob o nome The Summer Game. Doug Dymet, empregado da Digital Equipment Corporation, considerou o conceito do game apropriado e interessante o suficiente para demonstrar as capacidades da linguagem de programação FOCAL) e o poder do DEC PDP-8, os novo e lustrosos produtos de seus empregadores. The Summer Game, portanto, é uma tech-demo, uma demonstração do que um sistema PDP-8 mínimo era capaz de fazer. A preocupação não era mais ensinar economia ou história, e sim deslumbrar e impressionar os usuários - possivelmente, mesmo que não explicitamente, sob o pretexto de justificar um investimento na máquina.

Além de ter perdido sua função pedagógica, o Summer Game também perdeu parte de sua liberdade de recursos. O PDP-8 não era uma mainframe que ocupava uma sala inteira que nem o IBM 1401, nem Doug Dymet financiado pelo Department of Education para fazer o jogo. Então, por motivos técnicos e não-técnicos, o Summer Game simplificou muita coisa do Sumerian Game. Enquanto a versão original era dividida em três fases, com mecânicas de desenvolvimento tecnológico, rotas de comércio e guerras sendo adicionadas com o decorrer do tempo, o Summer Game se foca exclusivamente no que corresponde à primeira fase do Sumerian Game: distribua X alqueires de trigo para alimentar sua população e determine quantos acres de terra serão plantados.

Que o jogo fosse condensado e simplificado na transição de uma plataforma para a outra é compreensível. Não obstante, ao investigarmos o que foi simplificado ou ignorado e o que foi preservado ou adicionado. Por que Dymet escolheu reconstruir a primeira parte do game, focada no gerenciamento de recursos finitos, e não na segunda ou terceira partes, em que as relações com outras cidades-estado e outras dinâmicas sociais internas (desenvolvimentos tecnológicos, comércio) são postas em evidência? Se me permitem teorizar um pouquinho, a razão deve ter sido simplesmente porque Dymet considerou a primeira parte do game a mais interessante. Nela temos uma relação bem explícita entre as escolhas e consequências do jogador: alimente seu povo direito e ele crescerá e sua sociedade crescerá; faça decisões equivocadas e o povo morrerá.

Chegamos então ao último passo da transição, quando David H. Ahl portou o Summer Game da linguagem FOCAL para a muito mais popular e, criticamente, difundida BASIC. Foi então que o game assumiu de vez o nome Hamurabi. A tradução para o BASIC permitiu que o game fosse comercializado: em 1973 Ahl publicaria este e vários outros pequenos jogos na revista 101 BASIC Games, uma das primeiras revistas de computação a vender um milhão de cópias.

É importante notar aqui a forma essa forma particular de como Hamurabi enfim virou um produto comercial e atingisse um público muito mais amplo. Em vez de disquetes ou outro tipo de mídia de armazenamento digital, uma das formas mais comuns de distribuição de software dos 70 e início dos 80 era na forma de revistas e catálogos que vinham com o código de pequenos jogos e programas impressos em suas páginas para o usuário redigitar e rodar em casa. Em grande parte (exclusivamente?), esses programas estavam escritos em BASIC, que servia como uma espécie de língua franca entre os computadores da época e permitia rodar programas numa variedade gigantesca de hardware com poucas ou nenhuma modificação. Hamurabi e diversos outros games que foram criados em mainframes de ambientes empresariais e acadêmicos teriam ficados confinados a um pequeno grupinho de hackers e dificilmente teriam a influência que têm hoje não fosse a linguagem de programação BASIC e a distribuição de software em revistas e catálogos.

Uma consequência disso tudo é que para se experimentar Hamurabi de uma forma convincente, como ele foi experimentado pela maioria das pessoas dos 70 e 80, exige que o jogador pegue uma dessas revistas e redigite o código impresso linha por linha no computador, para então rodar num interpretador e rezar para não ter colocado algum vírgula ou sinal errado em algum lugar. Essa expectativa de que o usuário vai ler, redigitar, rodar e talvez debugar o código do jogo manualmente acaba criando algumas limitações, já que um jogo muito complexo ou com código muito grande seria inviável de se distribuir nesse modelo. Portanto, ao fim de várias transformações, a experiência de The Sumerian Game foi condensada, simplificada e destilada ao máximo, preservando apenas as partes que fossem consideradas chamativas o bastante, essenciais o suficiente, razoáveis de se replicar nos hardwares/linguagens alvo e minimamente commoditizáveis. Este é Hamurabi.

Reviewed on Jun 11, 2022


5 Comments


1 year ago

Jogos com escolha já eram algo antes mesmo de jogos serem ''jogos'', uau.

1 year ago

A evolução dos games para uma mídia narrativa foi surpreendentemente rápida, né? Nessa mesma época de Hamurabi você tem games como Civil War, Highnoon e Star Trek já traziam decisões e gerenciamento de recursos também. Pouco depois, Oregon Trail já trazia uma ludonarrativa mais robusta e dinâmica. Na metade dos 70, os gêneros de Adventure e RPG já estavam em cena, graças a games como Colossal Cave Adventure e dnd (shameless plug).

1 year ago

Nem me fale. Eu sempre digo que a evolução dos jogos entre os meios de entretenimento é a mais impactante. Cinema pode ter evoluído nos CGIs, mas atuação e direção são atemporais, o mesmo vale pra música, ela simplesmente não tem data. Já os jogos, a evolução deles é absurdamente fascinante. Tanto que virou uma mídia onde diversas narrativas só conseguem serem feitas dentro deles, Zero Escape é um dos que me vem primeiro em mente, não consigo ver um filme ou anime conseguindo transpor tudo aquilo.

E graficamente nem preciso dizer, o salto do 2D pro 3D nos anos 90 me assusta até hoje, e eu me pergunto como vai ser daqui uns 10 anos, a vida real simplesmente vai perder a graça kkk.

8 months ago

Gostei muito do seu texto! É bem interessante pensar essas questões em relação ao que circunscreve jogos que não foram propriamente feitos para serem jogos na acepção que damos hoje, nem como forma de arte, nem como forma de entretenimento. Eu acabei esbarrando na sua review quando estava separando uns materiais justamente pra escrever um texto sobre tech demo e a relação com a posição de videogame como arte.

Você por acaso tem uma conta no twitter que você fale de videogame ou fica circunscrito aqui e ao blog?

De qualquer maneira te segui aqui e dei uma lida em algumas reviews suas, e apesar de discordar de coisas (acho Kirby's Dream Land 2 o pior Kirby e odeio os bosses!!!) eu curti bastante as suas reviews.

7 months ago

@verezap Obrigado pelas gentis palavras!

Não tenho twitter ou facebook, mas tenho uma conta no mastodon que uso de vez em nunca, mas é só para reclamar na internet sobre a vida.