The Legend of Zelda tem uma das fórmulas mais reconhecíveis do mundo dos games. Seu herói explora um mundo vasto, que possui várias atividades não-obrigatórias e, de importância mais imediata para o plot, um templo. O templo é um lugar cheio de quebra-cabeças que devem ser resolvidos; alguns desses quebra-cabeças, entretanto, são a princípio insolúveis. Explorando o templo, o herói encontra um item especial que lhe concede alguma habilidade nova e lhe permite solucionar os puzzles antes impossíveis. Ao final do templo, há uma luta contra um chefão. Com o chefão vencido e o item especial conquistado, mais partes do mundo agora estão disponíveis para exploração. Lava, seca e repete.

A fórmula "Mundo > Templo > Item > Chefe > Repete" nasceu quase pronta no primeiro The Legend of Zelda e por volta do terceiro jogo da série já estava solidificada como uma marca registrada da franquia. Não que todos os Zeldas sejam estritamente a mesma coisa, alguns games da série fizeram adaptações, ajustes e experimentações. Dignos de nota, Link's Awakening e os Zeldas de DS modificaram a parte "Templo > Item" do ciclo criando um templo central que deve ser revisitado vários vezes com itens novos, Wind Waker focou-se bastante no mundo e A Link Between Worlds mudou completamente a relação do jogador com os itens. Não obstante, após literais décadas reiterando essa fórmula do sucesso, é natural que algumas pessoas (mas não todas!) tenham sentido que a série estava estagnada.

Ao que me parece, e as entrevistas dos devs parecem confirmar, em vez de desconstruir a fórmula de Zelda a equipe de BotW decidiu reconstruí-la. Em outras palavras, não jogar fora os elementos que fazem Zelda a franquia que a gente ama, mas analisá-los criticamente, entender como eles interagem, modificar o que não está funcionando ou poderia ser melhor e modernizar o que for preciso.

O resultado? Extremamente bem-sucedido no que fizeram, mas incompleto como um todo.

Depois de 71 horas e 9 minutos atravessando Hyrule, minha sensação é que na hora de reconstruir o ciclo "Mundo > Templo > Item > Chefe > Repete", pararam na parte "Mundo". O trabalho nos outros elementos da fórmula ficaram só no esboço.

Não é segredo para ninguém que essa é a Hyrule mais gostosa de explorar em toda a série. Muito disso se deve graças à ênfase na liberdade de movimento concedida à Link desde o início. As montanhas que rodeiam todos os cantos do mundo não são barreiras intransponíveis, mas convites para você ultrapassá-las. Seu arsenal de movimento é vasto e há uma boa dose de liberdade criativa em como utilizá-lo - principalmente com o Cryonis e Stasis.

Muitas vezes a motivação para explorar é simplesmente... O desejo de explorar e ver o que tem do outro lado. Se você vai encontrar um shrine, uma korok seed, um acampamento de moblins, ou até mesmo nada não faz muita diferença. A travessia é muitas vezes sua própria recompensa, e ela é tão engajante que isso raramente é um problema.

Os problemas começam quando a gente passa da parte "Mundo" e vai para o restante da fórmula - Templo > Item > Chefe.

Pra começar, os templos. Eles foram pulverizados sobre o mundo, assumindo a forma dos "shrines": construções infinitamente menores, focadas em um ou dois puzzles ou gimmick, diferente dos complexos cheios de quebra-cabeças cada vez mais mirabolantes de outrora. Essa ideia em si é bem legal. Significa que não importa por onde você vá no mundo vai encontrar algum puzzle ou desafio para cumprir. Com um total de 120 shrines, é improvável que você fique muito tempo sem se deparar com um.

O detalhe é que a quantidade não acompanha a qualidade. O youtuber Joseph Anderson fez uma [análise longform](<https://yewtu.be/watch?v=T15-xfUr8z4>) do jogo em que ele elabora muito bem esse ponto. Em suma, se você retirar os shrines que são apenas recompensa para quests (ou seja, apenas uma sala com um baú e uma spirit orb) e testes de força (só uma sala com um inimigo para matar) sobram só uns 60. Dos que sobraram, a maioria têm apenas um puzzle simples. Se bobear, mesmo pegando todos os shrines e combinando não deve dar nem dois templos de Twilight Princess direito. Se incluirmos as Bestas Sagradas, talvez dê uns 4 ou 5 templos, mas mesmo elas são repetitivas e pouco complexas.

Idealmente, o jogo deveria ter shrines de variados níveis de complexidade espalhados pelo mundo. Alguns poderiam ser bem simples mesmo, com um bocado de dificuldade média e alguns especiais maiores e mais desafiadores. Na realidade, o nivelamento foi feito por baixo, como se a preocupação principal fosse que qualquer jogador, em qualquer momento do jogo, não importando o quão bem ou mal equipado, pudesse completá-los. O efeito colateral disso é que em sua maioria os shrines são absolutamente esquecíveis, e mesmo os mais grandinhos não são muito marcantes.

Além de simplórios, os shrines são repetitivos. Isso é evidente principalmente nos testes de força, que são sempre contra o mesmo tipo de inimigo com essencialmente o mesmo moveset, a única diferença efetiva sendo o HP. Eu não acho esses tipos de shrines ruins em princípio, mas refazer o mesmo desafio 20 vezes? Haja paciência. Ou deveriam limitar o número de desafios do tipo, ou se certificar de que fossem mais variados.

De longe, os melhores shrines são aqueles que se passam fora dos shrines, na forma de quests ou desafios localizados no mundo exterior. Lugares como Eventide Island, Typhlo Ruins ou os Korok Trials. Além de muito bem feitos, essas seções fazem aquilo que creio que era a real intenção dos devs: apagar a distinção entre Mundo e Templo. Se o jogo todo fosse assim ele seria quase perfeito.

"Quase" porque ainda há os outros dois elementos da fórmula, os itens e os chefes.

Os itens foram os que sofreram a mudança mais radical no processo de reconstrução da fórmula da franquia. Em vez de serem uma recompensa por completar templos eles se tornaram parte permanente de seu arsenal desde o início do jogo, na forma das runas. Efetivamente agora os itens estão fora da fórmula: são uma mecânica tão básica quanto o movimento ou combate - e, de fato, estão integrados aos dois.

Ter os todos os itens disponíveis traz a vantagem teórica de que os devs podem integrá-los aos puzzles, combate e exploração desde o início do jogo. Inclusive, isso permite que os devs combinem o uso dos itens para criar desafios complexos, algo que em jogos anteriores só costumava acontecer perto do fim da aventura. Infelizmente isso fica só na teoria. Na prática cada runa é utilizada de forma individual para resolver problemas específicos. Até houve algumas raras ocasiões em que usei runas em conjunto, mas foram tão esparsas e tão raras que nem consigo apontar exatamente quando ou como foi. Nem mesmo o Castelo de Hyrule, tradicional dungeon final em que o jogo te desafia a provar tudo o que sabe fazer, se dá o trabalho de usar as runas em conjunto.

O potencial perdido não é o único problema. Se tirar os itens da fórmula não é prejudicial por si só, é preciso lembrar que eles cumpriam o importante papel de ser a recompensa por concluir um templo. E, em toda a série, os itens sempre foram um baita tesouro. Em seu lugar, BotW usa Spirit Orbs (que cumprem o mesmo papel de Heart Pieces) como a premiação por concluir os shrines (que tomam o lugar dos templos, lembremos). YMMV, mas eu particularmente achei isso uma compensação absolutamente insuficiente - afinal, nos outros Zeldas você ganhava um coração inteiro por concluir o templo e matar o chefão, além do item que conquistava no meio do processo.

Eu entendo que a preocupação era dar ao jogador ferramentas para explorar o mundo desde o início e, portanto, os itens não poderiam mais ser um tesouro dos templos. E considerando como os templos foram pulverizados em 120 shrines espalhados pelo mundo, fazer isso seria imprático, por mais que a ideia de um Zelda obscenamente gigante com 120 itens diferentes me apeteça. Mas ainda assim haveria formas de integrar as runas melhor aos shrines e dar ao jogador uma retribuição mais satisfatória. Por exemplo, alguns shrines poderiam dar upgrades em seus itens, que seria uma forma bem melhor de fazer isso do que aquela quest chatinha em Hateno, diga-se de passagem.

E mesmo que os shrines não adicionassem ou alterassem os itens per se, eles poderiam ser usados para alterar sua relação com eles. Uma ideia que certos metroidvanias modernos como Supraland, Toki Tori 2 e UNSIGHTED usam e gosto muito é a de que os itens possuem uma função principal óbvia e uma secundária ou até terciária "oculta". Então, por exemplo, em UNSIGHTED o Spinner é usado para se andar em trilhos e destruir certos blocos de pedra. Mas, além disso, se você tiver um bom timing, ele também pode ser usado para quicar na água, sendo possível atravessar vários lugares antes inacessíveis e até fazer alguns sequence breaks com ele. Essa habilidade está disponível desde o início, mas o jogo não te conta sobre ela explicitamente. Uma abordagem similar seria possível em BotW. Inclusive, alguns itens já têm esse aspecto — por exemplo, as flechas de fogo, além de queimarem inimigos e objetos, podem ser usadas para criar rajadas ascendentes de ar se usadas na grama. Ou o Cryonis, usado para se construir blocos de gelo, pode ser usado também para destruí-los, algo que apenas dois chefes utilizam. Certos shrines poderiam ser focados nessas funções secundárias, com o conhecimento adquirido sobre elas sendo, em si, uma recompensa. Indo mais longe, certas partes do mundo poderiam ser acessíveis somente com o uso dessas habilidades. Isso não prejudicaria o objetivo do jogo de ter todo o mapa livre para o jogador explorar, já que todas as ferramentas para tal continuam disponíveis, é só o conhecimento do jogador sobre elas que mudou.

Mas se o problema dos itens é que eles foram subutilizados, dos chefes já é mais sério. Eles são apenas... Ruins. Ok, pra ser justo, a ideia de haver chefes e subchefes espalhados no mundo como criaturas normais é bacana. A primeira vez que encontrei um Hinox foi muito legal. Aí encontrei ele uma segunda, terceira, quarta vez... E, é, não foi tão legal. No geral os minichefes são repetitivos e, depois que você os enfrenta uma vez, banais de lidar. Os chefões de verdade no fim das Bestas Sagradas são melhores, mas também não empolgam — pelo menos eles fazem algum uso das runas, que é um ponto positivo. E a batalha final contra Ganon... Existe.

Percebam que minhas críticas a BotW não são porque o jogo mexeu na fórmula da franquia. Minha crítica é que ele não fez o trabalho completo. Onde houve um pleno processo de reconstrução — o mundo e como atravessá-lo — obtivemos um resultado fenomenal. Fenomenal o suficiente para carregar o jogo quase sozinho e fazê-lo, mesmo considerando seus outros elementos subutilizados ou mal implementados, um dos melhores Zeldas. Mas não *o* melhor Zelda.

Reviewed on Dec 27, 2022


5 Comments


1 year ago

N.b.: Jogada a versão do Wii U, emulada no CEMU com resolução interna aumentada para 1080p e o mod FPS++ para deixar o game rodando a 60 FPS cravados. Emulação é belo e moral.

1 year ago

que textão foda

1 year ago

Eu sou um leigo quando se trata de Zelda pois não iniciei minha aventura na franquia ainda, mas você explicou de tal forma que até alguém de fora conseguisse entender. Textão! Seria o seu maior texto até agora?

1 year ago

@Hunyoshi O de Edith Finch com certeza é maior, e o de ZeroRanger tenho quase certeza que é também.

1 year ago

eu amo esse jogo, mas achei muito válido tudo que tu disse.

principalmente sobre as dungeons, que agora são shrines e as divine beasts, e as runes, parece que eles trocaram a complexidade dos outros zeldas por uma ideia de acessibilidade, específica deles, e "qualquer um pode fazer o que quiser a qualquer hora". isso é bem legal, porque costuma premiar curiosidade, mas tá muito longe de ser a única forma de deixar que ela te guie e de ser recompensado por isso. faltou dosar. tanto que as divine beasts, que eu gosto bastante, às vezes parecem menos uma dungeon e mais uns puzzles que, por acaso, tão no mesmo lugar, porque a única coesão interna é o mecanismo que resolve eles.