Veredito: Ludonarrativa em seu melhor estado.

Toda a discussão de "walking sims são ou não são jogos de videogame" é tola e estúpida. Ficar procurando definições formais de "videogame", e riscar uma linha cartesiana no chão pra separar o que entra e o que não entra nessa definição, é tão inútil para o amadurecimento da arte gamística como "tomates são frutas ou legumes?" é inútil para a culinária. Tomates são tomates, oras. Eles servem pra ir na salada, no molho, e até na pizza. É como perguntar "preto é ou não é uma cor?" e dar toda uma explicação científica de como cores são na verdade espectros da luz visível, ondas eletromagnéticas captadas pelo olho e interpretadas pelo sistema nervoso, e o preto é na verdade uma interrupção da luz visível e blablabla.

Não sei se a explicação científica é essa, eu não sou físico nem biólogo. Mas no fundo não importa: um desenhista ou um pintor sabe que, para criar aquilo que ele gosta de criar, o preto é uma cor. É usado como cor, tem função de cor, ele é - para todos os fins práticos e efetivos - uma cor e fim de papo. Não interessa a definição oficial.

What Remains of Edith Finch é um walking sim por definição, ou seja, uma aventura gráfica super ultra simplificada que consiste basicamente em andar pelo cenário e às vezes clicar em alguma coisa pra interagir. Não importa se formalmente ele é ou não é um jogo de videogame, se entra ou não numa definição cartesiana exata. Ele funciona como um jogo pra todos os fins práticos. Ele é uma história que só poderia ser contada pelas ferramentas fornecidas por jogos de videogame, porque só pode ser contada a partir da exploração do mundo e da paisagem oferecida ao jogador.

Desde o início você sabe como tudo acaba, a tela de pause deixa muito claro: você é Edith, a última sobrevivente da família Finch, voltando após a morte da sua mãe para a casa onde morou durante a infância, a fim de descobrir como cada membro da família morreu. Sua mãe passou a vida te negando as histórias da família, e agora chegou a hora de você descobrir essas histórias.

À medida que explora a casa e vai acessando novos cômodos, você descobre pequenos memoriais deixados ao longo das gerações por todos os membros, desde seu irmão que desapareceu aos 11 anos de idade ao avô que você nunca conheceu. Cada memorial, a vinheta de uma das mortes: um bebê de um ano que teve uma vida extremamente feliz apesar de curta, um viciado tentando lidar com a abstinência, e por aí vai até todas as histórias estarem contadas.

Todas as vinhetas são jogáveis. Todas as mortes são não só narradas, mas também vividas pela sua interação.

Toda a história da família Finch está impregnada pela morte desde que a casa foi construída e cabe agora a você, a caçula da última geração e a única sobrevivente depois da morte de sua bisavó e de sua mãe, descobrir essa história. Nesse sentido, What Remains of Edith Finch é uma história com começo, meio e fim. E como eu disse, uma que só poderia ser contada com tanta maestria por meio de um jogo de videogame.

Teve um geógrafo chamado Denis Cosgrove que ficou famoso por dizer que as paisagens humanas são um texto: nós deixamos nossas marcas na paisagem, e no futuro essas marcas contarão nossa história para as gerações seguintes. De forma que tanto as marcas deixadas quanto a interpretação dessas marcas estão inevitavelmente suscetíveis a todos os vícios e manias e visões de mundo tendenciosas que fazem parte da natureza humana. É algo intrínseco a qualquer texto e, portanto, a qualquer paisagem.

A casa dos Finch definitivamente funciona assim. Todas as marcas foram deixadas, desde seu trisavô até você. E agora que o tempo passou, chegou a hora de presenciar e interpretar.

Reviewed on Mar 10, 2023


9 Comments


1 year ago

Rapaz, eu concordo totalmente com o que você disse sobre a definicão de algo ser ou não ser um jogo.
A compreensão das formalidades envolvendo classe, gênero e afins em um jogo deveria ser (e acredito que seja, para a maioria das pessoas) um mero "tempero" na experiência, não algo que funciona como "deal breaker".
Eu ainda não tinha dado uma chance a esse jogo, mas agora eu quero e espero ansioso.

1 year ago

Bravo! O jogo que entendeu a linguagem!

1 year ago

Baita texto. Eu também adoro muito como essa história só poderia ser contada, desse jeito e com esse impacto, por um videogame e você definiu isso perfeitamente.

1 year ago

A Mica me elogia até ela descobrir que não fiquei com vontade de chorar em nenhum momento ao longo de toda a partida. 👀
Cuidado com essa ideia pragmatista de que definições (especificamente no campo da arte) não são importantes, porque se levada ao limite, nós chegamos à conclusão de que "tudo é arte", o que claramente não é verdade, aumenta a confusão no debate, e banaliza o que é realmente arte. Definições são necessárias, mas não devem ser rigorosas.

1 year ago

Tu tá certíssimo, Gabriel. Mas se reparar bem, eu nunca disse que definições em geral não são importantes, e sim que elas não importam para o processo criativo e para a experiência estética

É claro que é importante ter alguma clareza do que é um jogo de videogame ou não. Do contrário o menu de um filme de DVD ou um passeio pelo Google Street View seriam jogos. Mas no caso específico do que rolou com walking sims, especialmente depois do lançamento de Dear Esther, essa discussão é fútil e não passa de protecionismo barato. E protecionismo barato do clube do bolinha é pura burrice.

1 year ago

Reviewzassa CDX, se superou nessa!

1 year ago

Por isso que eu amo tuas reviews!