Roguelikes são fundamentados em repetição. Detalhes de terminologia ignorados; seguimos. Às vezes essas repetições são absolutas, cada vida uma página em branco; outras, vamos lentamente construindo pedaços de um inteiro - um personagem, uma narrativa, um entendimento, um arsenal. Mas por que repetir? Existe algo que pode ser entendido de maneiras diferentes quando composto pelas mesmas palavras? Mantras e orações - repetidos infinitamente, um tijolo de cada vez chegando mais perto de uma iluminação.

Returnal se repete. Não muito, mas as frases são longas, um pouco além da conta. Cada ida no carrossel te alimentando um pouquinho mais sobre um mistério - ora iluminando o caminho, ora mostrando que a sombra era muito maior do que se esperava. O cerne de cada ciclo é um balé letal, onde eles propõem a dança: tudo se resume a dançar no ritmo deles, e responder da forma que pode - aniquilação absoluta do outro lado sendo o único fechar das cortinas. O mistério é vasto - por que e como? Onde e quando? Aqui e lá? Ele e eu? Cada passo incerto no desconhecido, se encontra chão, constrói uma base segura para se reconstituir - entre os ciclos de violência há trégua, e nesse espaço pode-se planejar com as poucas peças que o jogo te fornece. Por que repetir? Releituras - novos olhos em um texto inerte trazem perspectiva inédita. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura.

Returnal se repete. Não só entre si. Pode-se dizer que este Ícaro subiu nos ombros dos gigantes - Isaac, principalmente - para alçar voo, e na subida aprendeu alguns truques próprios. Embora as entranhas não sejam nada revelador, a experiência momento a momento é absurda: Atropos tem uma voz através dos ambientes, suas paisagens - sonoras e visuais - evocam todo o duplo, triplo, múltiplo sentido que o jogo quer te provocar: curiosidade, medo, maravilha, nojo, melancolia, raiva, arrependimento. Prometeus foi buscar o fogo e trouxe também o Dualsense: em meio ao frenesi do combate, o controle pulsa vivo em suas mãos, extensão direta do tato como agente do jogo. Por que repetir? É apenas humano - academia, terapia, estudos, relacionamentos. Somos seres de rotina, e através dela construímos tudo. É de grão em grão que a galinha enche o bico.

Returnal se repete. Atropos se repete. Selene se repete. Por que? Não demora muito para o jogo deixar claro. Abandonar Helios e se jogar em direção ao desconhecido, ao perigoso, até que tudo faça sentido. Mas não é exatamente assim que funciona. Nem toda conclusão é uma conclusão ideal; nem toda jornada se conclui quando queremos, também. Queria que houvessem mais palavras neste dicionário, queria que me mostrasse mais lados de si. Não obstante os detalhes, Returnal é uma história que só pode ser contada assim: paulatina, mântrica, altos eufóricos seguidos de planejamento neurótico, um lampejo por vez.

Reviewed on Feb 26, 2023


6 Comments


1 year ago

Essa se superou. Que escrita magnífica! Que paralelos!

1 year ago

Juro que já tava esperando um "onde Judas perdeu as botas" ou qualquer outro provérbio no fim do último parágrafo. XD

Essas 11h foram pra fazer quantos %? Isso é bem curtinho prum roguelike.

1 year ago

Uma trívia que nem todo mundo sabe é que uma das terceirizaçõs no desenvolvimento dele foi pra um estúdio do Norte/Nordeste. Salbo engano do Ceará?

1 year ago

@CDX
Foi pra zerar e brincar uma run só na direção do "True Ending", sem nem tocar no DLC. O True Ending envolveria fazer mais umas 2 runs fim-a-fim, um pouco de sorte, e entrega basicamente duas cutscenes novas e alguns textos, e já tinha achado que tinha tirado o suco pra tirar do jogo, então vi no Youtube.

Que loucura isso do desenvolvimento, vou procurar saber sobre.

1 year ago

Achei. É um estúdio de artes visuais e animação 2D e 3D lá de Recife, Diorama o nome.

https://links.dioramadigital.com
https://youtu.be/x3Y3KhwCDtY?t=949

1 year ago

Cringe kkk